Eram por volta de 16h30 quando um grupo de homens armados carregando galões de gasolina abordaram um ônibus da Auto Viação Jabour em direção ao bairro de Paciência, na Zona Norte do Rio de Janeiro. “Ali é uma área muito perigosa, de milícia, constantemente com assaltos”, conta o motorista João* à Agência Brasil . Há 20 anos na profissão, João relata que já passou por assaltos e agressões durante ataques de grupos criminosos, mas aquela era a primeira vez que enfrentava um caso de incêndio.
Naquela segunda-feira, 23 de outubro de 2023, Matheus da Silva Rezende, conhecido como Faustão, sobrinho do miliciano Luís Antônio da Silva Braga, o Zinho, foi morto durante um confronto com a Polícia Civil na comunidade de Três Pontes, em Santa Cruz. Em represália, 35 ônibus e um trem foram queimados na Zona Oeste, sendo a maioria deles (20) da frota municipal, de acordo com informações do Sindicato das Empresas de Ônibus da Cidade do Rio de Janeiro (Rio Ônibus). O veículo que João dirigia naquela tarde estava entre um dos incendiados.
“Me pegaram e me bateram, mandaram eu e os passageiros descermos do ônibus e botaram fogo no coletivo no qual eu estava trabalhando nesse dia. Também botaram fogo nos carros de passeio mais a frente”, relembra. “Tomei dois tapões no meio da cara. E não só eu, os passageiros também apanharam na hora de descer. Aí meteram gasolina e mandaram a gente sentar no chão, ali na altura de Paciência, próximo à estação de trem”.
Coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF), Carolina Grillo explica que o ato de incendiar ônibus passou de uma forma de manifestar insatisfação com o poder público para um meio de demonstrar e reafirmar poder por parte de grupos armados. “Algo que antes era uma prática comum de demonstrar insatisfação, bastante espontânea por parte da população indignada com algo que tivesse ocorrido, foi incorporado ao modus operandi de chefes locais de grupos armados como forma de demonstração de poder e de ameaçar o poder público por meio da interrupção da ordem”, analisa.
Conforme dados disponibilizados pelo Sindicato das Empresas de Ônibus da Cidade do Rio de Janeiro, 32 veículos foram queimados de agosto do ano anterior a julho de 2024, gerando um prejuízo de aproximadamente R$ 22,9 milhões. Outros 2.516 foram vandalizados e 135 sequestrados para serem utilizados como barricadas. Quanto aos veículos sequestrados, os bairros mais afetados foram Vila Aliança, Cordovil e Ramos, já as linhas mais impactadas foram 926 (Senador Camará x Penha), 731 (Campo Grande x Marechal Hermes), 765 (Mendanha x Terminal Deodoro), 685 (Irajá x Méier) e 335 (Cordovil x Tiradentes).
Nos últimos dez anos, 423 veículos foram incendiados criminosamente no estado, sendo 236 apenas na capital, de acordo com dados da Federação das Empresas de Mobilidade do Estado do Rio de Janeiro (Semove). O segundo local com maior número de ocorrências foi Duque de Caxias, com 53 casos, mas também há registros de incêndios fora da Região Metropolitana, como em Angra dos Reis, Macaé, Cabo Frio, Resende e Paraty. “O município do Rio de Janeiro representa mais da metade dos casos de 2014 a 2024. Este ano já foram 12 — considerando o total de veículos, além dos municipais —, enquanto no ano passado, por conta dos 35 incendiados em outubro, foram 58”, avalia à Agência Brasil o gerente de Planejamento e Controle da Semove, Guilherme Wilson.
“Onde temos mais registros de ônibus incendiados em protestos é na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Tem outros lugares que sofrem muito com vandalismo, como banco rasgado ou roubado e janelas quebradas, como as regiões do Jacaré, de Manguinhos e da Maré, mas não são de incendiar”, traz o diretor de Comunicação e Relações Institucionais da Rio Ônibus, Paulo Valente. “Nesses locais, há um conflito maior entre as autoridades de segurança com os traficantes ou os milicianos”, acrescenta.
Já para João, os bairros de Cosmos, Guaratiba, Paciência e Santa Cruz são regiões de constante perigo, com pouco ou nenhum policiamento. “É complicado lá, policiamento mesmo é zero, ninguém vê viatura”. Em outubro, além do ônibus que dirigia, outros nove veículos da Auto Viação Jabour foram incendiados. “Um colega de trabalho teve queimaduras no corpo, parte do braço foi queimada. Até pedi para o meu superior me trocar de linha, já vinha pedindo isso a ele, e agora, graças a Deus, estou trabalhando em Bangu. Não estou mais naquela área, não tinha mais condição de trabalhar lá depois dessa confusão”, conta.
Apesar dos números levantados pela Rio Ônibus e pela Semove, a professora da UFF aponta para uma subnotificação das ocorrências registradas oficialmente pela Secretaria de Estado de Polícia Civil do Rio de Janeiro (SEPOL). Por meio de pedido de acesso à informação, a SEPOL disse que 33 incêndios criminosos contra ônibus foram registrados em delegacias da secretaria nos últimos cinco anos, sendo 15 em 2023, 20 a menos que os noticiados em outubro de 2023. Ainda conforme os dados da secretaria, 11 foram queimados em 2019, um em 2020, um em 2021 e cinco em 2022.
“Há um desinteresse em registrar devidamente os casos pelo fato de não haver uma categoria administrativa que gera uma estatística própria nos estudos de segurança pública. Pelo que parece pela subnotificação evidente, porque vemos na imprensa que esse número (da SEPOL) já foi superado, isso provavelmente tem a ver com as autoridades públicas não considerarem esse um tema relevante o suficiente para merecer uma categoria administrativa própria que vai gerar um dado específico”, descreve Grillo.
Dos 33 casos informados, apenas 25 apresentavam informações sobre os horários em que aconteceram: um entre meia-noite e 6h, quatro entre 6h e 12h, 14 entre 12h e 18h e seis entre 18h e meia-noite. O período próximo às 18h, segundo a professora, é preferível para os ataques aos transportes públicos por ser o horário em que as pessoas estão retornando do trabalho, possibilitando maior visibilidade. “Ao se incendiar um ônibus, pretende-se que essa ação tenha uma visibilidade que, de alguma forma, compense os riscos inerentes a essa prática. O incêndio de um ônibus no horário de volta do trabalho tem uma visibilidade maior porque produz um engarrafamento na cidade e impede as pessoas de retornarem para casa. Isso gera uma cobertura da imprensa, criando visibilidade para a insatisfação que quer ser demonstrada”.
Para diretor de Comunicação e Relações Institucionais da Rio Ônibus, o primeiro efeito dos atos de incêndio e vandalização dos ônibus é cercear o direito de ir e vir dos moradores das regiões afetadas. “Essas linhas não operam somente naquele local, elas circulam por outras regiões. Quando uma delas para de rodar, toda população usuária desse ônibus, independente de morar na comunidade ou não, é prejudicada”, argumenta. Hoje, de acordo com a Rio Ônibus, as empresas levam em média 180 dias para repor um veículo destruído, considerando que possuam recursos suficientes para realizar a substituição. “É necessário comprar um novo ônibus para substituir aquele que foi incendiado, e o ônibus não é como o carro de passeio, que está disponível na concessionária, é preciso mandar fabricar, para vir com todas as especificações. Cada ônibus queimado é um veículo a menos servindo a população do Rio de Janeiro por seis meses em média”.
Há ainda a experiência traumática vivenciada por passageiros e motoristas, como argumenta a pesquisadora do GENI. Como comenta Grillo, os motoristas já são submetidos a diversas situações de estresse no trabalho, como assaltos, engarrafamentos, cobranças em relação aos horários que devem cumprir, sobrecarga de funções — ao terem que atuar como condutores e cobradores ao mesmo tempo — e o desgaste emocional por terem que negar o acesso ao ônibus a pessoas que tentam entrar no veículo sem pagar a passagem. “Ser ameaçado, seja por uma turma de pessoas ou por homens armados, é algo bastante assustador para o cidadão que só quer sair do seu trabalho e chegar em casa para poder descansar”.
Após o dia de ataques que afetou a circulação pela capital carioca, além de impactar o funcionamento de comércios e escolas, João relata que passou por noites sem conseguir dormir e chegou a pedir demissão por conta do trauma. “Eu estava com medo de trabalhar. Foram várias noites sem dormir, eu fechava o olho e ficava pensando naqueles caras com galões de gasolina na mão. Foi um caos, um pânico total”.
Dados do Sindicato dos Rodoviários do Rio de Janeiro apontam que de 2022 a 2024, entre 200 e 250 motoristas abandonaram a profissão após situações de crimes e agressões nos transportes coletivos, incluindo casos de incêndios. No último ano, foram em torno de 130 a 140. Segundo o vice-presidente José Sacramento de Santana, o sindicato não conta com um número exato porque nem todos os casos documentados pelas empresas chegam ao órgão. “O cara abandona a profissão, se muda de estado e não se comunica com o sindicato. Pedem demissão e vão embora sem comunicar nada, sem dizer um motivo”, afirma. “Hoje, estamos entregues no Rio de Janeiro à milícia, a esse poder paralelo que domina a cidade. Faltam medidas de segurança não apenas aos motoristas de ônibus, mas à população também”, declara Santana.
*Nome fictício escolhido para preservar a segurança do entrevistado
*Estagiária sob supervisão de Vinícius Lisboa
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